domingo, 9 de maio de 2010

Mães e antimães - Moacyr Scliar


Não recordo ter visto pessoa com expressão mais sinistra do que a promotora acusada de agredir a menina que estava em vias de adotar. A indignação que sua postura despertou manifestou-se nas agressões que recebeu quando saía da delegacia de polícia.

Uma indignação compreensível. Essa senhora, que pretendia ser mãe (adotiva), estava revelando-se na verdade uma antimãe. E isso nos surpreende e perturba. Acreditamos na maternidade e na paternidade como instintos que os seres humanos partilham com outras criaturas. Não é raro que animais adotem filhotes abandonados, inclusive de espécies diferentes.

A propósito, vale lembrar a famosa história bíblica das duas mulheres que comparecem perante o rei Salomão disputando a posse de um bebê. O monarca ordena que um soldado corte a criança pelo meio, entregando a cada mulher uma metade. Uma delas, em desespero, grita que, nesse caso, o bebê deve ser entregue vivo à outra. O que é revelador: é esta a mãe verdadeira, diz Salomão. O teste funcionou. Funciona sempre.


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Ou quase sempre. Mães (e pais) que agridem seus filhos, praticando inclusive violência sexual, não são raros; este é, aliás, o tema do elogiado filme Preciosa, recentemente exibido em nossos cinemas. Mas aí a maioria das pessoas concordará que se trata de uma atitude patológica; é a mãe desnaturada, a mãe que age contra a natureza em geral e contra sua própria natureza. Isso acontece porque não somos apenas governados por nossos instintos, mas também por sentimentos e emoções, e estes muitas vezes servem de base para conflitos complicados e perigosos. O instinto manda que a mãe cuide amorosamente da criança; o conflito, porém, distorce essa inclinação anulando-a ou transformando-a em seu oposto, a agressão pura e simples. A solidão pode ser suficiente para isso, comenta o neurocientista John T. Cacioppo no livro Loneliness.

Experiências com animais mostram que fêmeas criadas em isolamento revelam-se mães incompetentes ou agressivas. No caso de seres humanos, o conflito basicamente resulta de frustrações, e nesse caso outras pessoas servem de válvula de escape, de bode expiatório. A criança, exatamente por ser indefesa, presta-se perfeitamente a esse papel.


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Mas a mãe desnaturada paga um preço. É possível que o sadismo proporcione-lhe uma alegria selvagem e passageira; passado esse momento, porém, vem a culpa, vem o sofrimento. No fundo, essas mães, biológicas ou adotivas, gostariam de poder amar as crianças, de canalizar para elas aquilo que têm de melhor. Não o conseguem. Move-as um impulso incontrolável, o mesmo impulso que leva o bandido a matar a vítima indefesa ou que levou Hitler a ordenar o Holocausto. Só uma coisa pode impedir essa tragédia; aquele grau de consciência, de racionalidade, que persiste mesmo na loucura mais profunda.

Se em algum momento a mãe agressora der-se conta de que precisa de ajuda, de que deve procurar alguém que a traga de volta para a realidade, é possível evitar-se situações como as que temos visto na TV. O rei Salomão morreu há muito tempo, mas existem terapeutas e amigos que podem desempenhar esse papel. As crianças agradecerão.

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