sábado, 26 de julho de 2008

As razões que o amor desconhece - Martha Medeiros


A constatação de que ninguém consegue ser do jeito que o amor de sua vida é

Você tem uma inteligência bem acima da média. Lê livros, revistas e jornais. Gosta dos filmes de Woody Allen, dos irmãos Coen e de Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego estável, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, entende muito de computador e seu fettuccine ao molho de ervas é de fazer qualquer um comer ajoelhado. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e acredita que ainda não inventaram nada melhor que sexo. Com um currículo desses, criatura, por que diabo está sem namorado?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu maravilhosa + você encantador = dois apaixonados. Não funciona assim.

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo-lhes à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Costuma ser despertado mais pelas flechas do Cupido que por uma ficha limpa.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai ligar e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário e só escuta Egberto Gismonti e Sivuca, Sivuca e Egberto Gismonti. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado, e, no entanto, você não consegue dispensá-lo. Quando a mão dele toca em sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita de boca, tem uma certa afeição por répteis e escreve poemas em noites de temporal. Por que você é vidrada nesse cara? Não pergunte a mim.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas a que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você a levou para conhecer sua mãe e ela foi de blusa transparente. Você gosta de rock e ela de trilha de novela, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano-Novo, nem no ódio vocês combinam. Então? Então que ela tem um jeito de passar a mão nos cabelos que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, se veste bem e é fã de Marisa Monte. Isso são apenas referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pelo modo como os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Ama-se por causa de uma massagem nos ombros, pela maneira de sorrir só com um lado da boca, pelas peculiaridades. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos há às pencas, bons motoristas e bons pais de família, está assim, ó. Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor de sua vida é.


P.S. Imagem da Escultura: "O Beijo" - Rodin

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